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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Meu querido tambo




                    CASEIROS PARA TAMBO DE LEITE
                                        EM VIAMÃO

 * Ordenha automática/ resfriador canalizado, 200 litros/dia – 15 vacas.
      ELA: Ordenhar manhã (05:30/07:30h) e tarde(16:30/18:30h), limpeza sala leite/ordenha, comida aos cachorros e limpeza casa principal. Sal: R$ 400,00
      ELE: Trato, pastagens, trator e limpeza estábulo. Sal: R$ 600,00
Obs: Boa casa com horta/galinhas, semi-mobiliada, água, luz e cesta básica.

Interessados contatar com Sr. Enilson 436-2432 ou  
                                                                  8248-5104
 

 
            Ele relutou bastante antes de ligar. Foram necessárias varias conversas entre os dois para que, enfim, vencido pelo cansaço e sem mais argumentos para se agarrar, Arthur tomasse a iniciativa.
            Arthur tinha qualidades e talentos incontestáveis, granjeando através deles muitas amizades. A sua conversação era agradável, com bom senso de humor. Apesar dos quase quarenta anos, era um mulato com dentes bem polidos, olhar vivaz e pele saudável. Combinava simpatia com beleza, e isso naturalmente abria-lhe algumas portas. Havia algo nele, contudo, que andava esgotando a paciência da sua mulher. Kleiva custara a perceber uma triste mas estampada realidade: O rapaz não gostava de trabalhar.
            O gelo, todos sabem, não foi feito para o contato com o fogo, pois derrete-se e perde a sua forma característica. A água, por sua vez, não nasceu para o óleo, pois se colocarmos ambos num copo eles sequer se misturam. Se deixarmos de lado os estados físicos da matéria e o mundo dos elementos químicos para adentrarmos no reino animal, veremos que da mesma forma, algumas espécies repelem ou incompatibilizam-se com outros seres e/ou ambientes. É o caso do peixe, que não nasceu para a grama ou para o chão de saibro. Por outro lado, o bom ditado já diz: “Gato escaldado tem medo de água fria” e dificilmente veremos o felino jogando-se por vontade própria num banho de rio.
             Arthur, conforme constatado e comprovado de fato, não nascera para o trabalho. Fugia dele como o diabo da cruz. Duas semanas antes de Kleiva colocá-lo contra a parede, insistindo com aquela página dos classificados aberta diante dele, escutou ela um intrigante diálogo. Naquele dia, ao final da tarde, receberam em casa a visita de Diogo, o vizinho e cumpadre que batizara Úrsula, a nenê do casal. Tomaram chimarrão, falaram sobre a última rodada do Gauchão e já no portão, quando a sós ficaram os dois varões, houve uma proposta do visitante, pedreiro “de mão cheia” e sempre bem requisitado para obras.

-- Ólha, to precisando di servente pra erguê umas parede lá na Dona Eloá. Ela qué qui faça um quarto nos fundo pru guri dela. Fiquei di passá lá amanhã cedo pra dá um orçamento pra velha. Di tarde, si fizé tempo bom, já começo o serviço... Tá a fim di encará essa?
-- Bah cara... É qui eu ajudo a Kleiva a cuidá da guriazinha aqui em casa... agora fica ruim pra mim...

            Ela ouviu tudo em silêncio, imóvel, atrás da cortina na janela e guardou pra si a revelação. Na gíria, diria-se que naquele exato instante, após tão forte sacudida, a ficha finalmente caiu.
            A situação financeira deles era preocupante e muito pouco promissora. Viviam de ranchos ofertados pela sogra de Kleiva e ás vezes por sua própria mãe, que trazia compras ás escondidas do marido, homem duro, que não admitia “sustentar vagabundo”. Pra piorar, Arthur andava jurado de morte por traficantes e alertado pra si o olhar da polícia.
            As ofertas de trabalho, isso ela não ignorava, estavam escassas. Haviam vagas, mas só para pessoas qualificadas com cursos e, principalmente, com experiência na função. Trabalhar num tambo, porém, parecia ser a chance de ouro para os dois, que não tinham assim tanto estudo. Além disso sairiam daquela vila onde o clima começava a ficar nebuloso. A luz no fim do túnel havia brilhado de fato naquele anúncio.
              Acabaram caindo nas graças do tal Enilson, proprietário daquele rebanho leiteiro, residente na zona rural do município de Viamão, à 10 km de Porto Alegre. Deixaram a pequena Úrsula com a mãe de Arthur e partiram para aquela guinada em suas vidas.

 
            O tambo abastecia armazéns e casas das redondezas, dispondo de vasta freguesia e credibilidade. O rapaz em sua primeira semana no emprego até que demonstrou algum empenho. Contudo, como de costume, começou a achar desgastante aquela rotina de acordar cedo em pleno inverno gaúcho. Seu Enilson, que simpatizara bastante com ele, ofereceu-lhe um remanejamento de função. Foi transferido para um abatedouro do fazendeiro, distante 2 km dali, onde lavaria sangue do chão e recolheria tripas, chifres, pêlos e tudo que não era aproveitado pelo açougue. O novo horário da pegada, às 10:00 h          da manhã, de imediato lhe agradou. Dava para descansar um pouco mais na cama.
             Observando, certa vez, a linha de produção e abate da firma, deparou-se com um fato curioso que fez-lhe pensar com seriedade. O abatedouro executava o chamado “abate humanitário”, onde os animais são respeitados e vivem com dignidade todos os seus dias. Certa ocasião,  resolveu o rapaz assistir passo a passo, como os bois e vacas eram tratados nos momentos finais de vida. Sentou-se confortavelmente num banquinho, bem perto do corredor final ou mangueira, por onde dois bois acabavam de passar, espetados pela lança do carneador. O da frente, marrom de patas brancas, pêlo lustroso e ralo, foi golpeado na cabeça por uma barra de ferro. Emitiu um longo mugido de dor. Apanhou ainda outras vezes, sempre na região do crânio, e por fim dobrou os joelhos, tombando pesadamente ao chão. O de trás, branco da raça zebu, brecou à 10m da linha de abate com um olhar assombrado. Parecia nitidamente perceber o que lhe aguardava logo à frente, sendo necessários vários gritos e algumas leves espetadas humanitárias dos peões para fazê-lo prosseguir.
            Arthur é hoje um convicto trabalhador do tambo, parece resignado à sorte que teve ao lado da companheira e não come mais carne de gado. Kleiva, por sua vez, pôde enfim agradecer e pagar as promessas à sua Nossa Senhora das Causas Impossíveis. Seu homem finalmente enveredou pela trilha do esforço e do suor para ganhar o pão. Úrsula mora com eles no chalé de madeira cedido pelo Sr. Enilson, adaptando-se com bastante rapidez à vida no campo. 


                                                                                            Cesar
           




Um comentário:

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito interessante César.
Triste o modo como acabam com os animais, e muita ironia na referência, "ao abate humanitário"
Um abraço e uma boa semana